O TER NÃO É SER
A humanidade tende a ser obtusa,
Quando só dá valor se acumula,
Sem buscar a verdade da eclusa,
Que sacia a sede de gente e mula.
Se eu sou melanina que aflora,
Sendo preto, amarelo ou vermelho,
Não me diga que o branco decora,
Pois sou arco-íris e o espelho.
Sendo alto, baixo ou mediano,
Sendo calvo, pixaim ou cabeludo,
E se às vezes tô gordo e suando,
Não é certo só magro e inculto.
Todos nós somos fruto de um lar,
Se há mata, montanha ou deserto,
Ou se cada praia me fala do mar,
Irei por savanas com meu concerto.
Quem nasceu longe de uma geleira,
Nunca vai entender o que é urso,
Ou aquele que não tem cabeleira,
Talvez não se saiba um maluco.
Tem rei que se acha ser divino,
Mas divina é a nossa existência,
Se o universo não é um destino,
Mas a fênix sábia e onipotência.
Não tenhamos prenhez pelo ouvido,
Ao buscarmos razões pro convívio,
Além da certeza de ter um amigo,
Pois o ter não garante alívio.
Com enxada, adubo e água,
Vou semear e sanar toda fome,
Vou rasgar em livros as mágoas,
E serei um griô e não só homem.
Sob um baobá ou um velho carvalho,
Em todo lugar caberá minha escola,
Pois o meu teatro será no orvalho,
Ouvindo gorjeios de aves senhoras.
Eu, que já vi a Via Láctea à noite,
E o privilégio dos postes apagados,
Sei da imensidão, vendo sul e norte,
E tenho a certeza de não ser o gado.
Nós somos cada reflexo da criação,
Sem rotas que digam para onde ir,
Que nos cobram razões e as ações,
Porque delas eu sou o existir.